"Necrofagia: [Do gr. nekrophágos.] Adj. S. m. 1. Diz-se de, ou animal que se alimenta de cadáveres. Do DICIONÁRIO AURÉLIO de Língua Portuguesa."
- Abra os olhos! Vamos!
Silêncio... moveu a mão em frente aos olhos:
- Argh! Estou cego!
Apenas a escuridão.
Intensa.
...plop!...
Algo rolou ao toque de seu cotovelo.
O chão: áspero.
...dor...nas pernas e quadril...dói a cabeça!
...e o fedor... algo morto...um fedor insuportável....
Arrastou-se para o lado, tateando. Notou coisas miúdas mexendo pelo chão e por sobre o corpo. Encontrou logo a parede. Ao mover o braço esquerdo percebeu o brilho dos ponteiros fluorescentes do relógio: "graças a Deus!". Não estava cego. Apenas as trevas eram tão intensas que o impossibilitavam enxergar um palmo à frente dos olhos. Passou a língua seca pelos lábios...estavam queimados...náusea. Vomitou nervosamente. Clorofórmio. Olhou no relógio: três e quinze. Da tarde ou da madrugada? De qualquer forma o haviam mantido desacordado por horas a fio. Usaram clorofórmio... ainda podia sentir o gosto amargo, mas o perfume enjoativo do anestésico quase não se distinguia do fedor acre que empestava o ambiente. Definitivamente havia alguma coisa morta e apodrecida naquele mesmo recinto. O ar havia se tornado minimamente respirável: insalubre. Cada respiro: sufocante. Chegou a cabeça rente ao chão. Ainda horrível, mas respirável... Acima a emanação cadavérica parecia corrosiva. Escarafunchou os bolsos à procura do isqueiro:
- "...putaquepariuputaquepariuputaquepariu..."! Onde é que eu tô? A pequenina chama bruxuleava como que rasgando uma superfície de breu. Temporariamente ofuscado, afastou a chama dos olhos. Ergueu-a. Ainda não via nada. Ergueu um pouco mais...
...whoup!...
Uma língua de fogo preencheu todo o ambiente. O ar mefítico explodira em uma bola de gases incandescentes fazendo com que o infeliz se encolhesse todo com o susto. Felizmente o fenômeno ocorrera em apenas uma fração de segundo. O bastante para deixá-lo trêmulo, apavorado e com os pêlos do braço e cabeça chamuscados.
- "Metano" - pensou.
Algo grande havia se decomposto naquele mesmo ambiente. A idéia de estar preso em um lugar onde algo ou alguém havia morrido o atingiu como uma marretada. Permaneceu congelado, petrificado na mesma posição, sentindo o medo se espalhar por todos os poros do corpo, ouvindo o silêncio. Silêncio? Não, não estava em silêncio. Havia algo ali com ele. Zumbidos. Moscas? Sim, moscas. Podia senti-las andando sobre seu corpo. Um enxame delas. E algo se arrastando pelo chão...
Levantou-se de um pulo e o impulso rápido fê-lo desferir um golpe seco contra o teto baixo.
- ah! "feladaputa". Minha cabeça, caralho!
Coçou o cocuruto. O teto não devia ter mais do que um metro e sessenta. Apoiou as duas mãos tateando, estendia-se reto à sua frente e para os lados. O fedor de carniça continuava horrível, mas, depois do fogo, o ar tornara-se respirável. Pôs-se novamente a escutar. Agora que estava em pé pôde perceber um pequeno chiado vindo do alto à esquerda. Moveu-se lentamente na direção do som até encontrar outra parede, adjacente à que estava encostado. O chiado parou. Apoiou as duas mãos nas paredes, ficou de frente para o canto. Algo saliente e pontudo feriu sua mão direita. Acendeu novamente o isqueiro, apesar do medo de causar outro incêndio que não aconteceu. A saliência pontuda era um vergalhão de ferro enferrujado. As paredes: concreto. O teto: concreto. O piso: concreto. Sólido. Amarelecido e com alguns tufos de musgo aqui e ali, infiltrações. Mas no alto do canto, na junção com as duas paredes e o teto, havia uma abertura redonda - um cano, na verdade - grande o bastante para se enfiar o braço. Foi o que ele fez, e... nada. Gritou desabaladamente: pediu por socorro, implorou por ajuda, pediu pelo amor de Deus. Mas nada nem ninguém deram sinal de tê-lo escutado. A chama do isqueiro queimou-lhe o dedo. Voltou-se para o interior, esperou que o isqueiro esfriasse, acendeu. Estava em um cubículo com não mais do que 4x4 m. de lado e no máximo 1,60 m. de altura, e no teto, ao centro, uma portinhola de ferro, trancada, que abria para dentro. O chão estava coalhado de moscas mortas, chamuscadas, mas várias delas ainda voavam e se moviam pelo local. ("provavelmente estavam entrando pelo buraco no teto"). Também havia vermes - centenas, milhares, dezenas de milhares de vermes que se reuniam em pequenos montículos e esporadicamente se moviam entre as moscas mortas do chão. Do outro lado do cárcere havia dois montes maiores, não de vermes, mas indistinguíveis de onde estava. À medida que se aproximava, o monte que estava à frente tomava a forma de um homem: sim, era um homem! Cabeludo, barbudo. Deitado de bruços com a cabeça virada para o outro lado. Sentiu uma pontada de alívio por não estar ali sozinho:
- Graças a Deus!
Apressou-se em tentar acordá-lo, mas, como não acordasse, reuniu forças e, (como o homem parecia por demasiado gordo) de um puxão virou seu corpo para si como se quisesse encará-lo. Mas o que o encarou foi um cadáver. Com as órbitas dos olhos carcomidas, a boca igualmente escancarada e negra. Ambas as concavidades eram um criatório de vermes; movendo-se e derramando das úlceras purulentas. O fedor que se levantou foi ainda mais tétrico. Aquilo não era um homem, muito menos um homem gordo - seu volume era devido ao inchaço causado pelos gases que se seguem à degeneração da carne. E como esta última se encontrava pastosa e grudada ao chão, o movimento do corpo fez com que o ventre se partisse expondo o seu interior enegrecido. As tripas haviam permanecido grudadas ao chão...
A visão do corpo decomposto e o mau cheiro provocaram um asco, seguido de uma náusea ainda maior do que a do clorofórmio, já não havia mais nada a ser botado para fora: vomitou bile, amarga, queimando-lhe a garganta...
...o isqueiro apagou...acendeu...
Engoliu o choro desabalado que o havia acometido, enfrentou o nojo, pôs-se a investigar o ambiente para descobrir alguma pista que o ajudasse a sair desta condição. Mas o semblante do morto não deixava de encará-lo. Mesmo sentindo repulsa ele não parava de olhar para aquela face contorcida - reveladora da agonia que acometera o moribundo, momentos antes do estertor final - esverdeada à luz tênue do isqueiro. Tentou desanuviar a mente. Olhou um pouco adiante, para o segundo monte encostado à parede, atrás do corpo,- só então se deu conta do que rolara ao toque do seu cotovelo no momento em que acordara:
- argh! Crânios humanos! Meu Deus! Quantos ossos...tantas pessoas...?- engoliu seco, as palavras engasgaram na garganta. Horrorizado, apavorado: - Eu vou morrer! Meu Deus não deixe que isso aconteça! Eu vou morrer... Empilhados no canto estavam tíbias, fêmures, crânios, costelas, restos de roupas, dentaduras, dentes de ouro ainda nos maxilares, próteses de platina...
Formando um amontoado negro e cheio de lodo que chegava à quase a metade da distância entre o chão e o teto. Desviou o olhar. Perscrutou em volta. Uma pequena lata de extrato de tomates encostada na parede, cheia de água colhida das infiltrações: as pessoas estavam sobrevivendo ali. E o homem morto? De quê morrera? Fome. Seu semblante era esquálido. Certamente morrera de fome. Desafiou novamente a repulsa e olhou para o homem. Só então percebeu algo escrito; tatuado no peito do morto:
- ...MI...
Deu-se conta de uma ardência na pele de seu próprio peito, outra tatuagem:
-...MID...
Afastou um pouco a camisa para o lado esquerdo:
-...MI-DA.
Desesperado, desnudou o peito arrancando os botões da camisa e leu:
- CO-MI-DA.
Comida! Era o mesmo que estava tatuado no morto.
* * *
- Não pode ser! O desgraçado não pode estar querendo que eu coma gente! GENTE! PESSOAS! - gritava ele desesperado andando em círculos no centro da câmara mortuária - E esse defunto? Nem presta mais! Está podre! Se comer isso, morro de disenteria!
Já fazia horas que estava às voltas com aquele dilema, quase um dia inteiro, ou melhor, 24 horas, já que não tinha como saber se era dia ou noite. Neste meio tempo já havia revirado o monte de ossos em busca de coisas úteis: 3 relógios(todos quebrados); trapos de roupas (que juntos formavam uma pequena pilha de uns 35 cm); 2 isqueiros bons, 1 vazio e quebrado; vários chaveiros com chaves; 5 óculos (todos quebrados) cujas lentes foram claramente polidas para serem usadas como facas; 1 estilete feito com um pedaço de vergalhão retirado da parede; restos de uma tocha feita com um fêmur e os trapos ensebados dos mortos. Este último item, alíás, ele descobriu ser uma ferramenta importante, porque além de economizar o gás do isqueiro como fonte de luz, quando acesa ajudava a diminuir a catinga que exalava do corpo putrefato, espantava as moscas, e, mais tarde, ele também descobriria que seria de serventia para cozinhar moscas e vermes que aplacariam a fome mordaz a que seria submetido. Também, foi ao utilizar a tocha que ele pôde descobrir a fonte do chiado que vinha do cano no teto - toda vez em que era acesa a tocha, o chiado iniciava, parando alguns minutos após ela ser apagada. Concluiu que devia ser um exaustor acionado por um sensor de fumaça; simples, mas eficiente. O problema com a tocha era que dentro da câmara, por si só, já fazia muito calor, com uma fonte de fogo a coisa ficava ainda pior. Daí em diante aprendeu logo a ficar no escuro. Pelo mesmo motivo havia desistido de uma idéia maluca de cremar o corpo do homem: - "com uma fogueira desse tamanho isso aqui pode virar um forno, e se eu não morrer cozido, morro sufocado com a fumaça..." - pensou. Quanto às lentes de óculos, não poderiam servir para outra coisa senão cortar e trinchar carne humana. De fato, elas possuíam formatos diferentes para diferentes tarefas e todas estavam sujas com sangue seco. Já o estilete, obviamente, servia para a mesma finalidade das lentes, mas também servia para outra coisa: escavar. As paredes estavam cheias de buracos, mas era óbvio que o concreto era espesso demais, duro demais para ser escavado. Sem falar que a câmara devia ser dentro da terra. Um túnel seria uma tarefa para vários meses, tempo que, talvez, ele não tivesse. Pensou então em escavar em volta da portinhola de ferro que se encontrava no teto ao centro. Mas também já haviam tentado isso. As dobradiças estavam firmemente soldadas em uma placa de ferro, que, por sua vez, estava soldada em uma malha de vergalhões que se estendia por toda a estrutura. O espaço em volta da portinhola era o mais escavado. Não tinha jeito, o local era à prova de fugas. Outra coisa: todos os pertences pessoais das vítimas pareciam estar lá. Isqueiros, chaves, relógios, etc. Tudo... Menos as carteiras com os documentos. Será que o raptor queria transformá-los todos em indigentes? Estaria querendo dificultar seu reconhecimento? Queria que esquecessem quem eram? A carne não tem nome... ou será que todas aquelas vaquinhas que vão todos os dias para o abate são chamadas pelo nome? Não, elas recebem um carimbo da saúde pública, do mesmo jeito que recebera a tatuagem em seu peito. Ali dentro não passava de simples CO-MI-DA! Será que todas aquelas pessoas teriam se alimentado de carne humana? Seria aquele um buraco de canibais? Que espécie de monstro o havia raptado? Até onde podia chegar a loucura humana a ponto de rebaixar seus semelhantes à tão vil patamar de existência? O ódio dele contra seu raptor agora era tão grande que poderia retalhá-lo e dá-lo de comer aos porcos, só para ficar assistindo e perguntando se estava feliz de ser feito de alimento. Divagou até sentir sono. Sentou encolhido em um canto e adormeceu. Sonhou que estava em um jantar chique, vestindo fraque, sentado a uma mesa luxuosa, em volta da qual pessoas de alto nível conversavam e riam frugalmente. Os serviçais chegaram com o prato principal, que ao ser destampado revelou uma cabeça humana que implorava: - não me coma, por favor, não me coma! No sonho ele se levantava horrorizado da mesa se recusando a comer e gritando "não", "não", enquanto todos os outros convidados gargalhavam e o ridicularizavam com mãos e pés humanos na boca, totalmente lambuzados da orgia canibal. Acordou suado e sobressaltado.
* * *
...tum,tum,tum...
O ruído, alto, ecoou.
...tum,tum,tum...
Novamente.
Estavam batendo do lado de fora da portinhola de ferro:
- Alguém vivo? - ecoou a voz de um homem do outro lado.
- "graças a Deus! Estou salvo". - o haviam encontrado, pensou.
Fazia 96 horas que estava ali e seu captor não havia dado sinal de que iria aparecer. Só poderiam tê-lo encontrado...
- Tirem-me daqui! - gritou num misto de alegria e desespero.
- Há. Hahahahaha! - em resposta apenas uma gargalhada. Era ele. O maldito, o desgraçado que o havia raptado e colocado ali. Finalmente o covarde aparecera:
- Me tira daqui seu desgraçado! Filho da puta! Quando eu sair daqui eu vou te matar! - novamente a gargalhada em resposta... isso o deixou irado: começou a bater na portinhola como se quisesse derrubá-la a murros. Esforço em vão.
... a gargalhada...
E então: silêncio. Ambos permaneceram assim por alguns segundos. Apreensão. Até que o outro lado da portinhola quebrasse subitamente a tenção perguntando em tom jocoso:
- Será que você está com fome?
- Vai à merda seu filho da puta! Você sabe que estou! Não fazia muito ele havia comido um cozido de vermes e moscas. E por isso sentia-se enjoado e nojento.
- Mas aí tem muita comida...Este último tripudio fez com que explodisse em ódio - se pudesse romper aquela portinhola transformaria-se em um psicopata ainda maior do que seu captor. Mataria-o sem nenhum remorso. Mas ao invés de demonstrar isso, preferiu demonstrar que era diferente, que com ele as intenções daquele demente nunca surtiriam efeito:
- Se você acha que eu vou me transformar em um canibal está muito enganado! Eu nunca vou comer gente! Está ouvindo? Prefiro morrer! Desta vez a gargalhada foi ficando cada vez mais distante, ele estava indo embora, mas não sem antes deixar uma última sentença:
- Será que a sua força de vontade é tão grande quanto os seus dotes de crítico literário? Eu duvido! Você vai se tornar aquilo que eu quero, sim, e muito em breve vai ter muita comida para se fartar, tanta, tanta carne...sssim, muuita carne...O som da gargalhada foi se esvaindo aos poucos até que um barulho de ferro com ferro (de certo uma tampa de bueiro) a interrompesse por completo. Mas, o que ele quis dizer com "dotes de crítico literário"?
- Meu Deus! Não pode ser! Mas, é impossível! Uma torrente de memórias se formou em sua cabeça. Aquele homem era mais insano do que nunca poderia imaginar. Mas como? Um trojan, só poderia ser isso. Mas tinha de ser extremamente bem feito para passar pelo seu sistema de software; firewall, antivírus, detectores de worms... descobrira seu nick. Vinha monitorando sua vida por todo aquele tempo, um ano, pouco mais, pouco menos. Por isso sabia o local do seu trabalho, a hora em que saía, onde estacionara o carro... daí foi fácil, um garrote por trás, clorofórmio e pum! Mais uma vaca pro abatedouro! O louco era extremamente inteligente... Lembrou-se na hora daquele conto de horror que lera na internet. O havia encontrado em um site onde outras historietas eram enviadas pelos leitores e publicadas. O título lhe chamara a atenção: "Necrofagia". Contava a história de um garoto que fora obrigado a comer a carne do próprio pai após um acidente de avião, anos mais tarde ele tornara-se um psicopata que seqüestrava suas vítimas e os obrigava a comer carne humana. Apenas fora omitida a câmara em que estava, de resto, era exatamente a situação por que estava passando. Lembrou-se de ter enviado um comentário ao conto, definido como "horror gore". Escrevera que o achava infantil, de mau gosto, mau escrito e inverossímil. Inverossímil! Ou seja, que nunca poderia ser verdade! Sua situação tornara-se irônica ao ridículo! À época ainda tripudiara sobre a definição do conto: - "o quê quer dizer 'horror gore'? seria 'piada de mal 'gore'?". Muito engraçado... Também houve outros comentários ao texto além do seu, onze para ser mais exato. Acendeu a tocha e começou a contar os crânios na pilha de ossos: dez, com mais o da "carniça"... - onze. Existe um ditado que diz: "quem fala o que quer, ouve o que não quer".
* * *
Já não sabia mais quanto tempo estava lá. Passava mais tempo dormindo do que acordado, visivelmente magro e sem forças. As moscas e vermes já não o satisfaziam mais. A vida não mais importava. Quando não tinha mais esperança, ela foi renovada. Acordou de súbito com um susto: a portinhola foi aberta com um estrondo e por ela despencou um corpo. Antes que pudesse alcançar a saída ela foi fechada, tão rapidamente quanto fora aberta. Apalpou em volta buscando o isqueiro e a tocha, que foi acesa com presteza, pegou com a mão direita o estilete e se aproximou do corpo que caíra pela abertura do teto. Tratava-se de uma mulher, desacordada, ainda sob efeito do clorofórmio; bonita, com os cabelos longos e escorridos, caídos no rosto por cima dos óculos de armações leves, ligeiramente acima do peso: gordinha, isso era bom... Ajoelhou ao lado dela e olhou para seu peito:
- CO-MI-DA!
Apertou o cabo do estilete, mirou a jugular. E os personagens continuaram sem nome...
Brunno Bocca
"Necrofagia - A Câmara Mortuária" - no prelo. (Todas as situações, logradouros, personagens vivos, mortos ou morto-vivos descritos aqui não têm qualquer relação com a realidade, qualquer semelhança é mera coincidência)